sexta-feira, 23 de março de 2012

Resenha: A questão étnica negra no ensino de Geografia


A lei 10.639, sancionada em 2003 pelo presidente Lula, prevê uma série de medidas que vão ao encontro de uma demanda histórica da Comunidade Negra no Brasil. Dentre essas medidas está, sem dúvida, as questões referentes à escola e o processo de ensino-aprendizagem, ou seja, a escolarização de milhões de jovens brasileiros. Surge então o desafio de construir uma valorização da identidade negra também a partir da escola. Como tornar este espaço um lugar de desconstrução de preconceitos com o intuito de promover a igualdade racial? Como “deseuropeizar” o ensino nas escolas, o tornando mais plural, valorizando outras culturas não-européias também? Que tipo de currículo atenderá aos anseios por uma educação para inclusão das populações historicamente excluídas e a-historicizadas, sempre colocadas como marginais em relação ao processo de desenvolvimento europeu?
Santos enriquece a análise sobre o tema a partir do ponto de vista do ensino de Geografia e diz que há muito a se fazer, já que a lei, apesar de uma conquista importante, é apenas um passo vencer a desigualdade racial. Assim, de conquista, a lei passa a ser um instrumento, que professores devem utilizar para construir práticas nas escolas que atendam essa reivindicação que surge a partir de toda a luta travada pelo Movimento Negro brasileiro. Santos propõe então, (re)pensarmos “possibilidades de inserção e revisão de conteúdos trabalhados pela Geografia, enquanto saber sobre o mundo, que constrói visões de mundo, de si e do outro, influenciando comportamentos nas relações raciais”.
O referido autor nos propõe a seguinte questão: por que a Geografia é importante nas relações raciais? Para responder essa pergunta, resgata o sentido de Geografia, que na sua concepção é instrumento para “se posicionar no mundo”. “A Geografia pode colaborar para que possamos relacionar o mundo como um todo ao seu espaço vivido” diz ele.
Apesar de pouco explorado nas escolas, um ensino que aborde as questões identitárias e territorialidades de grupos marginalizados tem demonstrado ser importante instrumento para os professores. Se pegarmos um livro didático, podemos ver que os referenciais histórico e geográficos são extremamente “ocidentalizados”. Como expandir a visão sobre o mundo a partir da Geografia? Um dos exemplos que Emerson dos Santos coloca é a questão dos mapas: “ver ou não o seu grupo social num mapa é uma eficaz política de identidade”.
Para estudar Geografia, Santos aponta que devemos conceber o espaço geográfico como estrutura, mas também como experiência. Acho que Santos é bastante coerente quando evidencia a questão do espaço como experiência, o que parece ser muito “escanteado” na forma tradicional de ensino. Os dois são importantes, mas as experiências dão vida à Geografia, talvez o que mais necessitamos para resolvermos nossas questões de desinteresse e indisciplina em sala de aula.
A questão racial é então colocada como centralidade no debate. Santos aponta que esse conceito é construído artificialmente e
“um princípio social de classificação de indivíduos e grupos, construído articificialmente para o ordenamento de relações de hierarquias e poder.
Enquanto tal, ela regula comportamentos e relações e interfere nas trajetórias de indivíduos e na inserção social de grupos, sendo então um fator crucial na constituição da nossa estrutura social e espacial” (SANTOS, 2010).

Estas relações mencionadas acabam constituindo lugares de opressão, resistência, exclusão, esperança, etc., ou seja, dão sentimentos, trazem sentimentos, o que pode servir para o professor dar mais humanidade, mais calor para a sala de aula. Esta construção tem o espaço material e simbólico como indissociáveis. Os Quilombos são exemplos de lugares que tentam resistir. Em Porto Alegre há quatro Quilombos Urbanos auto-determinados, sendo apenas um deles, por enquanto, intitulado. Contudo, sua demarcação legal depende de uma luta política ferrenha contra interesses do capital imobiliário e tem sido pauta importante dentro do Movimento Negro nacional. Lá, nos Quilombos, a luta material é completamente indissociável da luta simbólica, a partir do resgate cultural, da memória dos ancestrais. E é uma trincheira tão ou mais complicada que a titulação dos territórios.
Santos aborda também uma questão interessantíssima: a construção racializada das relações sociais no espaço. O que acontece é que há uma ligação muito evidente entre lugar de origem, o Ethos, e a representação racial. Por exemplo: quando pensamos em negro qual continente vem a cabeça? Sim, a África, mas com certeza ela não é o único continente onde há negros desde muito tempo, dentro do nosso padrão racial. Na Ásia e Oceania também há negros, mas pouco ou em nada são lembrados por nós. Compreendi que Santos quis demonstrar o paralelo existente entre construção da imagem da África subdesenvolvida (lembrando que subdesenvolvimento é um padrão europeu de estágio das forças produtivas de um determinado país) com a imagem do negro como uma pessoa num estágio inferior da civilização como um instrumento de legitimação da dominação de toda a população negra em outros lugares do mundo.
Assim, o que devemos fazer, é buscar uma complexificação da História:
“Relacionamos ‘branco’ com Europa, mesmo sabendo que não é apenas lá que habitavam historicamente homens e mulheres com estas características, e também que parte significativa dos indivíduos que no padrão de relações raciais brasileiro são classificados como ‘brancos’ não são oriundos do que chamamos de Europa” (SANTOS, 2010).

“Raça, portanto, sob esta ótica, deixa de ser um conceito biológico e passa a ser geográfico”. Assim Santos denomina de identidades geoculturais as identidades baseadas em referenciais espaciais. Bom, portanto, aí me parece mais um argumento convincente para que nós professores de Geografia abordemos a questão da identidade negra nas nossas aulas.
Dentre outras coisas, Santos propõe para o professor de Geografia, uma busca pelo descentramento da narrativa. Ou seja, o narrador passa ser o outro. Um exemplo usado pelo autor é o que se vê como história econômica do Brasil e a Teoria dos Ciclos Econômicos nos livros didáticos de Geografia. Tudo é contado a partir apenas das regiões produtoras de mercadoria. As outras regiões do Brasil são colocadas numa posição de “não-existência”, que segundo Santos acabam deslegitimando sua dominação. “Esta narrativa produz a imagem espacial segundo a qual os processos históricos de ‘contato’ entre a região centro e as demais apareçam como um ‘transbordamento’ de processos internos àquela que é o centro da narrativa”.
A partir desta análise o autor propõe alternativas ao eurocentrismo. Uma delas seria justamente um olhar da Geografia sobre a questão das Comunidades Remanescentes de Quilombos, “pois são marcas espaciais (rugosidades, no dizer de Milton Santos) da resistência dos negros a escravidão. Outra seria também um cuidado com a questão das toponímias. Ou seja, compreender os nomes dos lugares, das ruas, das praças, monumentos ajudam a compreender a relação de poder no espaço, resgatam memórias e conformam uma relação de poder exercida por quem conta a história. Santos aponta a necessidade de politização e “desbranqueamento” desta discussão, em diversos contextos.
Fazendo uma análise do texto de Santos como um todo, notadamente o autor é brilhante. A forma altamente rica e particularmente crítica, não só ao “esquecimento” da questão negra pelas escolas, o que me parece vem mudando com o advento das semanas temáticas (semana da consciência negra, por exemplo), e uma possível visibilidade que tenha se dado a questão racial no Brasil nas últimas décadas, mas também a própria forma que se trabalha os próprios conteúdos ditos tradicionais, como a História do Brasil, que há muito tempo é passado nas escolas e ainda não consegue descentrar da narrativa o europeu, o descobridor, referindo-se sempre aos não europeus, não capitalistas, como se fosse um “transbordamento” daquele que é o centro narrativa.
Pergunto-me até onde os professores estão preparados para poder fazer essa descentração da narrativa a que se refere Santos. Sem entrar no mérito de toda a condição a que está coloca a escola pública e os profissionais das instituições públicas da educação, me pergunto se realmente os profissionais dessas instituições, e em especial os professores de Geografia, tem interesse em falar de territorialidade negra na cidade. Considero que, sem ao menos ter contato com a literatura produzida sobre os territórios negros na cidade e conhecer de fato estes territórios será muito difícil que isso venha a acontecer.
Como fonte de estudo sobre remanescentes de Quilombola, Porto Alegre é campo fértil. Hoje, existem vários livros que contam a história da colonização negra em Porto Alegre. Na última feira do livro pude comprar dois: “Colonos e Quilombolas – Memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre” (2010), pesquisa coordenada por Irene Santos; e “Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre” acho que também de 2010 dos autores Ilma Silva Vilasboas, Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Júnior e Vinicuis Vieira de Souza. O primeiro traz narrativas de histórias pessoais de colonos vindos da África e seus descendentes por Porto Alegre e consegue justamente trazer a narrativa desses sujeitos, quebrando com a lógica do “europeu” falando sobre o negro.
Como opção de trabalho de campo, os professores da região central da cidade, como por exemplo Cidade Baixa, Menino Deus e Azenha mais particularmente, podem levar seus alunos para dois quilombos que se encontram nessa região: o quilombo do Fidélix, ao lado do hospital Porto Alegre, e o Quilombo do Areal, próximo a Avenida Baronesa do Gravataí e mais precisamente no beco chamado de Avenida Luiz Guaranha, no sul da Cidade Baixa.

Referência bibliográfica:

SANTOS, Renato Emerson. Ensino de geografia e currículo: questões a partir da lei 10.639. in: Terra Livre, n.34 – Crise, Práxis e Autonomia: Espaços de Resistência e Esperanças. AGB. São Paulo. 2010. 


Felipe da Costa Franco
Licenciando em Geografia - UFRGS e professor no projeto Mais Educação da rede estadual e municipal de educação em Porto Alegre/RS.

Os Marcadores do Território



O território é concebido a partir de uma apropriação dos sujeitos. Um dado espaço – “prisão original” – se torna território a partir das significações (signos) dado a ele pelo(s) sujeito(s) – individual(is) ou coletivo(s). O território, portanto, continuando o parafraseamento iniciado, é, segundo Claude Raffestin (1933, p.44), “a prisão que os homens constroem para si”, ou seja, é resultado do conjunto de signos dado a ele pelo(s) sujeito(s).
Esses significados são expressão de uma gama de elementos culturais, sociais e espaciais, expressos objetivamente e/ou subjetivamente pelo(s) sujeito(s). O território contém em si esses elementos, e sua compreensão envolve o entendimento da apreensão que o(s) sujeito(s) faz(em) dele.
Isabel Castro Henriques (2003), no seu estudo sobre Angola colonial, tem como uma de suas preocupações o desvelamento dos elementos identificadores do espaço, no sentido de construir uma grelha interpretativa, capaz de permitir uma arrumação eficaz, mesmo que provisória, desses elementos. O desvelamento dessas simbologias possibilita o entendimento da territorialidade de um grupo. A esses símbolos ela denomina marcadores do território.

São seis (6) os tipos de marcadores enumerados:

1.       Marcadores “vivos”: são os marcadores criados pela natureza e interpretados e classificados em vista do processo de socialização, ou seja, os elementos da natureza recebem significado pelo grupo e mediam a socialização. Um território escolhido é necessariamente transformado tendo em vista duas operações: a adequação ao projeto do grupo e a reciclagem do próprio sistema ecológico.

2.       Marcadores “simbólicos”: não há marcador que não dependa de uma carga simbólica, mas estes simbolismos possuem hierarquia: alguns estão mais próximos da articulação homem/religião, outros mantêm com os espíritos relação mais tênue. Exemplos: plantas com funções religiosas, cromatismo simbólico, complexo de máscaras com cores, formas e materiais que definem a função no ritual.
3.       Marcadores “fabricados”: a fabricação de materiais, que obterão carga simbólica e/ou funcional, concentra não só o talento dos artesãos, mas o conhecimento íntimo das matérias-primas – fibras, essências, resinas, corantes – conjunto organizado em função das tarefas simbólicas a levar a cabo.
4.       Marcadores “históricos”: as marcas históricas se diferenciam entre sociedades com escrita banalizada e não. Tal como em outras circunstâncias, damo-nos conta da impossibilidade de compreender as articulações internas das sociedades africanas sem a mobilização constante da história: a dos homens, reforçada pela da natureza e dos objetos fabricados, para estabelecer relação contínua com os espíritos que, genericamente, os europeus incluem no quadro dos “feitiços”. Neste sentido, até mesmo as árvores podem ser consideradas “monumentos históricos”, pois presenciaram grandes acontecimentos, onde a ordem temporal não tem muita importância, mas sim a sua representação, e seu mito.
5.       Marcadores “musicais” ou sonoros: um dos suportes mais evidentes do processo de socialização está ligado a tríade fundamental: música, dança, canto. Tambores são utilizados não só para produzir música, mas também para estabelecer relações a longa distância entre os diferentes grupos, ajudando assim a assegurar a coesão do território.
6.       Marcadores “funcionais”: não havendo uma cartografia dos caminhos, marcadores funcionais, como para servir de referência nos caminhos, eram bastante referenciados por historiadores etnólogos em suas publicações. Estes marcadores são de duas ordens: naturais (vegetais, minerais, aquáticos) e construídos.